Você trafega por sites, plataformas e redes sociais do jeito que trafega atualmente graças ao Marco Civil da Internet, que completa dez anos nesta terça-feira (23). Formalmente conhecido como Lei 12.965/2014, o Marco Civil estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no país. Em suma, a lei determina as “regras do jogo” no ambiente digital brasileiro. Por isso, também é chamado de “Constituição das redes”.
Entre os pontos-chave do Marco Civil da Internet, estão: neutralidade da rede; privacidade e proteção de dados; liberdade de expressão e responsabilidade dos provedores. E o Olhar Digital repercutiu esses pontos com especialistas para você entender a importância da “Constituição da internet” e quais são os rumos possíveis para ela.
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O que é Marco Civil da Internet?
Sancionado em 2014, o Marco Civil é uma lei importante para a regulação do uso da internet no Brasil. Em termos de direitos na internet, é considerado um dos marcos regulatórios mais avançados do mundo. Em essência, o texto busca equilibrar liberdade com responsabilidade no uso da rede. E garantir que o ambiente online seja mais seguro, democrático e livre para os usuários.
Confira abaixo um resumo dos pontos-chave citados no início desta reportagem:
- Neutralidade da rede: É uma das bases do Marco Civil. Significa que todo o tráfego de dados na internet deve ser tratado igualmente, sem discriminação por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação. As operadoras de internet não podem, por exemplo, reduzir a velocidade de um serviço online para favorecer outro;
- Privacidade e proteção de dados: O Marco Civil protege a privacidade dos usuários e a confidencialidade de suas comunicações na internet, exceto em casos previstos por lei. Além disso, as empresas só podem coletar dados pessoais com o consentimento expresso do usuário, e esses dados só podem ser utilizados para os fins que motivaram a sua coleta;
- Liberdade de expressão: A legislação assegura a liberdade de expressão e impede que o acesso à internet seja arbitrariamente bloqueado, interrompido ou degradado;
- Responsabilidade dos provedores: Os provedores de conexão à internet não são responsáveis pelo conteúdo publicado por seus usuários. No entanto, os provedores de aplicações na internet, como redes sociais e blogs, podem ser responsabilizados judicialmente se não tomarem as medidas necessárias para retirar conteúdos que infrinjam a lei (como pornografia infantil ou discursos de ódio), após ordem judicial específica.
‘Regras do jogo’
Para entender a dimensão jurídica do Marco Civil da Internet brasileira, o Olhar Digital conversou com os advogados Plínio Higasi e Hélio Tomba Neto, especialistas em Direito Digital. Higasi é fundador e CEO da associação Digital Rights, na qual Neto atua como vice-presidente.
Para Neto, a importância do Marco Civil reside no estabelecimento das “regras do jogo” para a internet no Brasil. “Antes da lei, havia uma lacuna legal específica para a internet, embora leis gerais como a Constituição Federal, o Código Civil e a lei do consumidor ainda se aplicassem. Então, o Marco Civil oferece uma legislação específica que ajuda a definir normas claras para questões de internet, incluindo privacidade, liberdade de expressão e neutralidade da rede”, explicou. O advogado acrescentou que o Marco Civil integra e reforça garantias constitucionais e direitos de consumo, que proporcionam uma base para discussões e decisões legais sobre a internet no Brasil.
Sobre o que mudou ao longo dos dez anos pós-aprovação do Marco Civil da Internet, Higasi destacou várias evoluções importantes. O advogado mencionou progressos em questões legais específicas, como “revenge porn” e quebra de sigilo – que, segundo ele, agora têm regramento mais consolidado. Além disso, Higasi apontou evolução na jurisprudência sobre a necessidade de URLs para a remoção de conteúdo da internet, o que, para o advogado, sinaliza uma mudança significativa na forma como o Judiciário lida com casos envolvendo a internet. Higasi também menciona que a evolução continua e novas adaptações são necessárias à medida que novas tecnologias e desafios emergem.
Quando questionado sobre essas adaptações no Marco Civil, o fundador da Digital Rights sugeriu algumas mudanças que poderiam ser implementadas para melhorar a aplicabilidade e a eficácia da “Constituição da internet”. Confira abaixo:
- Integrar o Marco Civil com uma legislação sobre fake news (mais sobre isso no final desta reportagem) para abordar melhor o problema da desinformação online;
- Estabelecer obrigações educacionais sobre direitos digitais nas escolas para melhorar o entendimento e a responsabilidade sobre o uso da internet;
- Revisar e esclarecer algumas das disposições atuais do Marco Civil para reduzir ambiguidades e melhorar a interpretação da legislação em casos práticos.
Marco Civil e cibersegurança
Já para entender os impactos do Marco Civil na segurança cibernética (seja de empresas, seja de usuários), o Olhar Digital conversou com Felipe Thomé, Chief Information Security Officer (CISO) da Dfense Security. Essa função significa que Thomé desenvolve e implementa as estratégias de segurança da informação.
Para começar, Thomé disse que o Marco Civil ajudou a criar um ambiente mais estável e previsível para os prestadores de serviços online. O CISO também destacou como seria problemático se essa legislação não existisse. Neste “exercício de pensamento”, Thomé descreveu cenários de restrição de acesso e discriminação de serviço com base em poder aquisitivo ou status jurídico. Para o especialista, a lei proporciona igualdade e proteção ao garantir que tanto indivíduos quanto empresas operem sob os mesmos direitos e garantias.
A neutralidade da rede, garantida pelo Marco Civil, também contribui para a segurança, conforme explicado por Thomé. Ele apontou que sem neutralidade, os criminosos poderiam explorar limitações de velocidade e acesso para realizar golpes de engenharia social, por exemplo – o que afetaria a integridade e segurança do usuário, claro.
O CISO da Dfense Security utilizou a analogia de uma cebola para descrever como as camadas de proteção cibernética são implementadas, desde o usuário individual até os provedores de serviços globais. Nesta analogia, o Marco Civil garante que esses provedores de serviço, como os de internet e e-mail, mantenham certos tipos de controles que protegem a primeira camada, na qual estão os usuários.
Em relação ao que vem por aí, Felipe Thomé vislumbra um futuro para o ambiente digital e o Marco Civil onde as mudanças tecnológicas e sociais continuarão a desafiar a legislação existente, necessitando de ajustes e atualizações constantes. Ele prevê que a digitalização da sociedade aumentará, com mais serviços e identidades movendo-se para plataformas online. E, para ele, isso exigirá evolução nas leis para proteger melhor os dados e a privacidade dos usuários.
O CISO também apontou que a integração de novas tecnologias, como blockchain e moedas digitais, trará novos desafios regulatórios e de segurança. Por isso, destacou a necessidade de um Marco Civil capaz de se adaptar e abordar essas questões emergentes para garantir a proteção e a continuidade dos serviços digitais num mundo cada vez mais conectado.
No fim da entrevista, Thomé deixou dois recados: um para empresas, outro para usuários. Confira abaixo:
- Para as empresas: Thomé enfatizou que as empresas, que são afetadas pelo Marco Civil tanto positiva quanto negativamente, precisam se comprometer com controles rigorosos (com bom propósito). Ele sugeriu que as empresas podem melhorar a eficácia desses controles ao oferecer treinamentos aos seus usuários, por exemplo. Esses treinamentos ajudariam os usuários a entender melhor como reagir em situações de segurança cibernética e aumentariam a capacidade geral de proteção tanto para os usuários quanto para as próprias empresas;
- Para usuários: O CISO aconselhou os usuários finais a nunca esquecerem os controles básicos de segurança. Thomé recomendou investir em softwares antivírus e utilizar autenticação de dois fatores sempre que possível. Para ele, estas práticas simples, mas eficazes, podem aumentar significativamente a segurança dos usuários na internet.
E o PL das Fake News?
Lembra que o advogado Plínio Hagasi destacou a necessidade de integrar o Marco Civil com uma legislação sobre fake news? Então, foi o que o deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP) propôs ao redigir, em 2020, o Projeto de Lei 2630, que ficou conhecido como PL das Fake News. O deputado trabalhou ao longo de quatro anos para lapidar o texto do PL, mas o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), decidiu “zerar o jogo“. Lira anunciou, no começo de abril, a criação de um grupo de trabalho para debater um novo projeto de regulação das redes sociais.
O Marco Civil da Internet e o PL das Fake News estavam intrinsecamente ligados no contexto da regulamentação digital no Brasil. Como? O Marco Civil estabelece a estrutura básica para o uso da internet no país, focando em liberdade de expressão e neutralidade da rede. E o PL das Fake News buscava complementar essa legislação abordando especificamente a disseminação de desinformação online.
Em entrevista ao canal Meio logo após a decisão de Lira, o deputado explicou que o PL das Fake News era uma tentativa de regulamentar mais diretamente as plataformas digitais para prevenir e combater a propagação de notícias falsas. Para Orlando Silva, isso é uma extensão natural dos princípios já delineados no Marco Civil.
O deputado também explicou que o PL das Fake News abordava a liberdade de expressão de duas maneiras principais:
- Devido processo para moderação de conteúdo: O PL propunha a criação de um processo adequado que permitisse aos usuários contestar decisões de moderação de conteúdo pelas plataformas digitais. Atualmente, as plataformas têm o poder de remover ou alterar o alcance das publicações, mas, para o deputado, falta um mecanismo direto e simples para os usuários contestarem essas ações. Silva argumenta que a implementação de um canal de recurso fácil de usar seria um avanço significativo na defesa da liberdade de expressão;
- ‘Dever de cuidado’ em relação a crimes: O PL também estabelecia o que é chamado de “dever de cuidado” para as empresas em relação a certos crimes tipificados no código penal, como terrorismo, racismo, e ataques ao estado democrático de direito. As plataformas seriam obrigadas a moderar conteúdos que incorram nesses crimes, com a responsabilidade de agir preventivamente ou em resposta a notificações sobre tais conteúdos.
Para Orlando Silva, essas medidas fortaleceriam a liberdade de expressão. Primeiro, ao criar mecanismos para que os próprios usuários pudessem defender seus direitos. Segundo, ao garantirem que as plataformas fossem responsáveis por moderar conteúdo que pudesse ser prejudicial ou ilegal. Agora, está a cargo do grupo de trabalho anunciado por Lira apresentar um projeto “mais maduro”, nas palavras do presidente da Câmara. A ideia é que isso ocorra em meados de maio. Aguardemos.