Qual é a verdadeira medida de um indivíduo pleno de habilidades, com uma trajetória marcada pelo sucesso e pela autonomia, que não se priva de explorar os desejos mais profundos e velados? A realidade frequentemente nos ensina que só percebemos o valor do que possuímos quando as estruturas que edificamos, imaginando-as inabaláveis, começam a desmoronar, revelando a fragilidade da nossa existência, jogada ao acaso por forças maiores.
Em momentos onde o percurso da vida nos parece restritivo ou exíguo demais para conter nossa essência, é o próprio universo que se encarrega de nos apresentar novos motivos de contentamento em meio a trajetórias já assinaladas pelo sofrimento. Essa é a jornada vivida pelo personagem central de “Drive My Car”, um filme que, através das sutis lições orientais sobre superação e aceitação do fracasso, desvela os recônditos mais sombrios da alma de um homem forçado a reconsiderar suas formas de sentir e interagir.
O diretor Ryûsuke Hamaguchi se apropria do conto homônimo de Haruki Murakami para destilar dessa narrativa um misto de caos e ordem, enriquecendo a obra com alusões eruditas a um clássico do drama global, num exercício de intertextualidade criativo e cativante.
A existência de Yûsuke Kafuku, interpretado por Hidetoshi Nishijima, parece fluir ao sabor de uma tranquilidade quase poética. Este ator e diretor teatral colhe momentos de serenidade transcendental, especialmente após os íntimos encontros com sua esposa, a roteirista Oto, vivida por Reika Kirishima, quando se debruça sobre os detalhes de uma futura produção televisiva.
A trama se desenvolve em torno de uma jovem apaixonada que invade a residência de um colega para subtrair objetos que a fazem lembrar dele. A escrita de Hamaguchi, juntamente com Murakami e Takamasa Oe, mantém Nishijima e Kirishima em cena tanto quanto possível, buscando provocar no público uma sensação de desconforto pela ausência notável de Oto, sugerida mais do que explicitada. No decorrer da história, emerge a fixação de Kafuku por remontar “Tio Vanya”, de Anton Chekhov, datado de 1898, com um elenco japonês pronunciando-se em russo, além da introdução de Misaki, uma figura que se torna uma companheira para ele após um diagnóstico de glaucoma que se agrava sem piedade.
Tôko Miura dá vida a essa nova força vital em um período marcado pela proximidade da morte e pela doença, lutando também para se proteger dos espectros de existências das quais já não se lembra.
Filme: Drive My Car
Direção: Ryûsuke Hamaguchi
Ano: 2021
Gênero: Thriller/Drama
Nota: 10/10