*Com informações de Alexandre Saconi, colunista do UOL
Um relatório recém-divulgado pela Agência Nacional de Inteligência Geoespacial (NGA) dos EUA, em parceria com o Centro Geográfico de Defesa (DGC) do Reino Unido, revelou que a Anomalia Magnética do Atlântico Sul (AMAS), região onde o campo magnético da Terra é mais fraco, está crescendo.
Essa falha cobre parte do Brasil e do sul do Oceano Atlântico e é monitorada de perto pela NASA devido aos seus potenciais efeitos em satélites e sinais de comunicação.
O campo magnético da Terra atua como um escudo protetor contra partículas carregadas do Sol, que vêm com a radiação cósmica e os ventos solares. No entanto, sobre essa área em específico, essa proteção é enfraquecida, permitindo que as partículas se aproximem mais da superfície do que o normal. Isso pode causar problemas significativos para satélites que passam pela região.
De acordo com o relatório, a intensidade do campo magnético na área da AMAS é cerca de um terço da média global. Embora a causa exata da anomalia ainda não seja conhecida, os pesquisadores observaram que ela está se expandindo e se aprofundando para o oeste. Entre 2020 e 2024, estima-se que a área da AMAS tenha aumentado em, aproximadamente, 7%.
Por que a NASA monitora a anomalia magnética sobre o Brasil
A NASA e outras autoridades espaciais monitoram a AMAS porque a radiação intensa na região pode danificar os sistemas de bordo dos satélites e interferir na coleta de dados, além de causar problemas na comunicação por rádio.
Segundo a agência, grupos de pesquisa geomagnética, geofísica e heliofísica observam e modelam a AMAS para prever mudanças futuras e preparar-se para desafios nos satélites e na segurança humana no Espaço.
Além dos riscos para satélites, a AMAS interessa à NASA como um indicador das mudanças nos campos magnéticos da Terra e seus efeitos na atmosfera. A agência observou que a AMAS está se dividindo em duas partes, complicando ainda mais as missões de satélite que passam pela área afetada.
Como a anomalia “funciona”
O Olhar Digital conversou com Roberto “Pena” Spinelli, físico pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador com foco em Inteligência Artificial (IA) (Alinhamento e Consciência), com especialização em Machine Learning pela Universidade Stanford, nos EUA. Ele explicou o que o crescimento da anomalia representa.
Primeiro, de acordo com Pena, é necessário entender o que é o campo magnético da Terra. “O campo magnético da Terra é causado por correntes de convecção, que são materiais líquidos em movimento lá no centro da Terra, compostos principalmente por materiais ferromagnéticos – rochas derretidas que têm em sua composição ferro e outros elementos químicos. Quando você tem essas correntes se movendo por conta do giro da Terra e da temperatura, então criam-se correntes internas que ficam subindo, descendo e girando e induzem o campo magnético”.
O campo magnético da Terra age como defesa contra partículas carregadas do Sol, que vêm com a radiação cósmica e os ventos solares. No entanto, nessa região específica, essa proteção é reduzida, permitindo maior proximidade das partículas com a superfície terrestre. Isso pode gerar problemas para satélites que cruzam essa área.
Isso é causado, segundo Pena, por imperfeições nas correntes internas. “Se as correntes acontecessem de maneira simétrica, fossem todas perfeitas, o campo magnético da Terra seria homogêneo. Mas existem imperfeições nessas correntes, o que resulta em anomalias magnéticas”.
Pena descreve essas imperfeições como rochas sólidas que tomam formas diferentes, a subducção das placas tectônicas de forma diferente em cada região e outras variações geológicas, com destaque para uma possível presença de um pedaço do protoplaneta Theia que se chocou com a Terra há bilhões de anos, dando origem à Lua (saiba mais aqui).
Além de estar crescendo, Pena destaca que a anomalia também está se separando e se movendo para oeste. “Tudo isso por causa de heterogeneidades de dentro da Terra, que também se movem com o tempo e com a movimentação das placas tectônicas. Essa movimentação afeta as correntes de convecção, portanto, afetam também o campo magnético”.
Pena ressalta que esse movimento todo é muito lento e que a AMAS existe já há milhões de anos. Então, não é algo preocupante, sendo apenas um ponto mais fraco da magnetosfera da Terra, não implicando em resultados práticos na nossa vida, a não ser aos satélites que por ali trafeguem.
Há outro risco importante: os aviões. Recentemente, já tivemos casos de aeroportos afetados pela anomalia (o de Guarulhos [SP], no caso). E os aviões, correm risco?
Leia mais:
- Mesmo aviões modernos e quase todos os usados na aviação comercial contam com bússolas, orientadas pelo magnetismo terrestre;
- Invenção de séculos de existência, ela substitui o GPS caso ele falhe;
- Próximo ao pouso, sem o uso de instrumentos, os pilotos precisam apontar o nariz do avião para uma direção magnética determinada para manterem o alinhamento com a pista.
Daniele Brandt, professora do Instituto de Geofísica, Astronomia e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), explica ao UOL que a anomalia em cima do Brasil não coloca nossos voos em risco. Isso porque o campo magnético possui três dimensões: inclinação, declinação e intensidade.
A inclinação pode ocorrer para cima ou para baixo em relação ao solo. A intensidade trata do quão forte ou fraco o fenômeno se manifesta, sendo exatamente nesse aspecto que a anomalia se encontra.
Brandt aponta que nosso campo magnético não aparece uniformemente. “A Amas diz respeito a uma região na superfície do nosso planeta onde observamos a intensidade do campo geomagnético mais fraca do que o esperado por um campo dipolar”, explica.
Isso é algo já esperado, pois o magnetismo da Terra muda constantemente. O núcleo terrestre possui alta concentração de ferro e níquel em altas pressões e temperaturas.
O campo magnético da Terra não é estático, ele varia com o passar dos anos. Isso porque o campo é gerado nas profundezas do nosso planeta e a fonte que o gera é um material metálico em estado líquido que compõe o núcleo externo e está em constante movimento.
Daniele Brandt, professora do Instituto de Geofísica, Astronomia e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), ao UOL
A movimentação ocorre, especialmente, por conta das diferenças de temperatura e composição entre a base e o topo do núcleo externo, chamado de movimento de convecção, bem como a rotação do planeta.
Com o passar dos anos, o campo geomagnético vai mudando, os polos geomagnéticos vão se deslocando, assim como a declinação, a inclinação e a intensidade em um determinado local também vão sendo alteradas no tempo.
Daniele Brandt, professora do Instituto de Geofísica, Astronomia e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), ao UOL
Vale lembrar que as bússolas apontam para o chamado norte magnético, diferente daquele que vemos no mapa. Além disso, ele não é fixo e se desloca de tempos em tempos, pois depende do movimento da porção líquida do núcleo da Terra.
O norte magnético fica mais ao lado do norte do mapa, localizando-se mais próximo de Canadá e Groenlândia. Brandt explica que “a direção apontada pela bússola magnética forma um ângulo com o norte geográfico, este ângulo é chamado de declinação magnética”.
Essa diferença entre os nortes real e magnético chama-se declinação, variando conforme a localização no planeta. Os pilotos de aeronaves a usam para correção de rotas.
A professora da USP explica que o campo geomagnético funciona como um escudo protetor dos ventos solares, que nada mais são do que a radiação e partículas que o Sol emite.
Entretanto, para nós, que vivemos na superfície da Terra, e para os aviões, que sobrevoam a altitudes menores que 12 km, ainda estamos protegidos dos ventos solares – mesmo vivendo aqui na região da anomalia. Acabam sendo afetados pela anomalia os satélites que orbitam a mais de 400 km de altitude, altura em que o campo magnético se torna ainda mais fraco. Quando um satélite passa pela região da anomalia, ele pode apresentar falhas ou é desligado temporariamente para evitar danos, a depender da atividade solar também.
Daniele Brandt, professora do Instituto de Geofísica, Astronomia e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), ao UOL
Magnetismo e aviação
Annibal Hetem, professor do curso de engenharia aeroespacial da Universidade Federal do ABC (UFABC), explica ao UOL que, primordialmente, a aviação acaba sendo afetada com mudanças na declinação magnética. “Alterações na inclinação e na intensidade [caso da AMAS] não são tão relevantes para os voos”, conjectura.
Essa anomalia dificilmente poderá afetar os voos e transportes via navegação, pois, nos dias de hoje, utilizamos os sistemas GPS. Antigamente, no tempo da navegação via bússolas, esse fenômeno iria afetar a precisão dos transportes. Eventualmente, algumas espécies migratórias de animais podem ser afetadas, principalmente aquelas que utilizam o campo magnético como referência.
Annibal Hetem, professor do curso de engenharia aeroespacial da Universidade Federal do ABC (UFABC), ao UOL
Hetem diz ainda que não existe motivo para pânico, já que a anomalia é uma variação um tanto pequena no campo total. “Os aeroportos, por exemplo, não terão necessidade de mudar seus equipamentos ou sinalizações ligadas ao tema”, expõe.
Alteração afetando aeroportos
A declinação se altera de acordo com a região do planeta. Só que a AMAS não está relacionada diretamente com a declinação, que afeta a aviação diretamente.
Hetem explica também que “o campo magnético já mudou várias vezes ao longo da história da Terra desde quando começou a ser medido, em 1831, e ele não é igual em toda parte do planeta”.
Como há pequenas variações nas linhas magnéticas de local para local, alguns aeroportos precisam mudar sua dinâmica.
Um bom exemplo é o Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo. Em 2022, a declinação magnética na região sofreu alteração, obrigando a GRU Airport, concessionária do espaço, a mudar algumas características do aeroporto.
Cada pista de cada aeroporto possui grandes números pintados na cabeceira, que vão de 01 a 36. Estes são o ângulo que a bússola magnética dos aviões está marcando dividido por dez, a começar pelo Norte. O último número costuma ser desprezado e, se superior a cinco, é arredondado para cima.
Portanto, se uma pista tem a bússola apontada para 090º, a numeração será 09, enquanto a que está alinhada a 177º vira a pista 18.
Havendo duas ou mais pistas paralelas, os números são acompanhados de letras, sendo a da esquerda “L”, de left (esquerda, em inglês) e, a da direita, “R”, de right (direita, em inglês). Havendo uma pista central, a letra será a “C”, de centro.
Guarulhos possuí duas pistas, que tinham os números 27 e 09, acompanhadas das letras L e R. A alteração no campo magnético da Terra fez o Decea (Departamento de Controle de Espaço Aéreo), que é ligado à FAB (Força Aérea Brasileira) modificar a nomenclatura das pistas para 10L/28R e 10R/28L.
As mudanças envolveram mais do que repintar as cabeceiras das pistas, mas também se fez necessário modificar a documentação de navegação, sistemas informativos do tráfego aéreo e a sinalização de solo de pistas e pátios.
Tais mudanças documentais são referências para os pilotos e são consultadas sempre antes da realização dos voos, para que o profissional fique por dentro de atualizações do aeroporto.
Desde a inauguração do aeroporto, em 1985, nunca foi necessário fazer esses ajustes. A FAB afirmou que a mudança no campo magnético “ocorre lentamente e, em média, altera um grau a cada dez anos”.
A mudança em Guarulhos foi “pequena”, mas tal precisão é fundamental para as vidas humanas carregadas diariamente pelos aviões que por lá passam.
Um estudo publicado em 2020 na Proceedings of the National Academy of Sciences descartou o temor de que a expansão da AMAS pudesse alterar o campo magnético global, indicando que a anomalia é uma característica persistente, remontando a milhões de anos.
Embora não represente riscos diretos à saúde humana, seu impacto em satélites e comunicações justifica o monitoramento e pesquisa contínuos para entendê-la melhor.