“Afulele, Afulele adeo, Afulele
Oya aba kobelajo afulele
Oya bamba Oya afulele ade”[1]
Há pessoas que, por serem tão divinas, são capazes de manifestar em vida a energia de uma entidade maior. A personagem que escolhemos para sincretizar nesta crônica nos parece ser um desses exemplos. Isabel Salgado (1960-2022) se apresenta aqui como referência de força, imponência e movimento, características que a aproxima da energia da orixá Iansã, a regente de fenômenos climáticos – ventos, raios e tempestades – e da dinâmica que tanto caotiza a vida, como também a organiza. Nada passa incólume à presença de Iansã em um terreiro, assim como nada permaneceu o mesmo nas quadras, após a passagem de Isabel.
Com 11 anos, Isabel já se destacava nos jogos de vôlei no colégio no qual só estudavam meninas: o Notre Dame, localizado no Rio de Janeiro. Magra e alta, poderia ter se resumido aos estereótipos das suas características físicas, afinal foi por meio delas que a princípio começou a jogar vôlei. Porém, dois anos depois, já como promessa de futuro talento, chegou ao Flamengo pelas mãos de Ênio Figueiredo para atuar nas categorias de base do clube. Em 1976, a então titular da equipe do Flamengo (medalha de bronze no brasileiro daquele ano), foi convocada pela primeira vez para a seleção brasileira.
Além da terceira colocação em 1976, pelo Flamengo Isabel também conquistou os campeonatos brasileiros de vôlei de 1978 e de 1980. Mas o ano de 1980 reservou outras boas coisas para a jogadora, foi nesse ano que Isabel disputou sua primeira olimpíada[2], em Moscou (Rússia). De lá, embarcou direto para a Itália, onde foi jogar no Módena. Esse acontecimento a consagrou como primeira jogadora de vôlei do Brasil a atuar na Europa. Fora do Brasil, além da Itália, Isabel também jogou no voleibol japonês. No ano de 1981, ela foi campeã sul-americana pelo time da Gávea.
Por onde passava, Isabel personificava uma imagem altiva, astuta, estrategista, nunca estava na inércia, sempre se colocava em movimento, dentro e fora das quadras. Logo ficou conhecida como Isabel do vôlei, provando que o fazer laboral muitas vezes se mimetiza com a própria vida. O arquétipo de Iansã se faz vivo no corpo feminino de Isabel, representando uma guerreira que luta por justiça. De origem iorubá, o nome Iansã significa “Mãe do entardecer”. É no entardecer também que estão as matizes de suas vestes, que transitam entre tons de vermelho.
Isabel engravidou de sua primeira filha, Pilar, aos 17 anos. Com 19 anos foi para Itália como mãe solo. Gerou outros três filhos em sua barriga: em 1983 nasceu Maria Clara; no ano de 1986 nasceu Pedro; e em 1987, Carol[3]. Na segunda gravidez de Isabel, ela quebrou paradigmas no esporte ao atuar no alto rendimento, disputando campeonatos pelo Flamengo até o sexto mês de gravidez. O mesmo se passou nas demais gestações, outra vez Isabel joga vôlei de barrigão e traz à tona a discussão do desafio da maternidade no esporte. Dos quatro filhos biológicos, os três últimos são atletas de vôlei – Isabel tem também um filho adotivo.
As imagens exuberantes do corpo de Isabel gerando uma vida, no pleno exercício da sua profissão de atleta, remete-nos à potência máxima de Iansã: sua capacidade de se transmutar em búfalo. A hibridização de Iansã com búfalo é uma das maiores representações de fúria existentes no panteão dos orixás. Assim como a roupagem de Isabel, prenhe em quadra, transformou-se à época em uma das imagens mais emblemáticas do vôlei feminino até aquele momento. Com sua postura, Isabel, assim como faz Iansã, subverte lógicas, afronta padrões.
Fora das quadras, sua figura materna, demonstrada no cuidado com seus filhos e amigos, remete-nos à referência da borboleta: leve e com rara beleza. O poder de se transformar em borboleta foi dado como presente à Iansã por Exu, para que ela não esquecesse que por detrás da fúria que a governava, também estava a delicadeza, a poesia, a capacidade de transformação de si e dos lugares por onde passava.
Isabel era muito ligada à Jaqueline, amiga do vôlei de quadra, do vôlei de praia e de brigas políticas em favor das mulheres no esporte. Elas foram cortadas várias vezes por motivos de descontentamento, diante de posturas “ditatoriais” de treinadores, e por lutar pela igualdade do vôlei feminino em relação ao masculino. Por esses feitos, Isabel e Jaqueline figuram como mulheres destemidas, apresentaram-se no seu tempo histórico como símbolos da luta por igualdade de gênero no esporte. Outro caso em que Isabel atuou em defesa das mulheres ocorreu no Japão, quando foi para cima do técnico japonês que deferiu um tapa em uma jogadora – foi preciso o resto do time para contê-la.
No torneio em 1982, intitulado de “Mundialito de voleibol” e realizado no Ibirapuera em São Paulo, a seleção feminina foi à final depois de virar um jogo histórico contra a Coreia do Sul nas semifinais. A disputa pela medalha de ouro foi realizada em um jogo contra o Japão. Durante a partida, a torcida do Brasil começou a jogar objetos na quadra contra a equipe japonesa, que vencia o jogo. Nesse momento, Isabel vai até a cabine de som e pelo microfone pede aos 22 mil torcedores presentes que parassem com a malcriação. O time brasileiro ficou com a medalha de prata nesse evento, que até hoje é reconhecido como um dos torneios que popularizou o vôlei feminino no Brasil. Foi também em 1982 que Isabel posou na capa da Veja e ali foi intitulada de “Musa do Vôlei” – título que ela mesma nunca tomou para si.
Isabel, assim como Iansã, lutava melhor que qualquer homem, era do trabalho árduo que vinha a sua força. Nesse campo, tal como essa divindade, podia ser serena como uma brisa, mas também destruidora como um vendaval, tanto como atacante em quadra, quanto fora das quatro linhas. Para guerrear, Iansã carrega em suas mãos uma espada e um eruexim (feito com rabo de búfalo), com o qual subjuga espíritos sem evolução. Tal qual Iansã, Isabel guerreava contra mentes atrasadas e cuspia fogo defendendo seus posicionamentos políticos. As bolas que ela jogava faziam seus adversários, dentro e fora das quadras, metaforicamente, “comer bolas de fogo”. Nos rituais realizados para homenagear Iansã são feitos em sua oferenda os acarajés –a palavra acarajé [4]deriva do termo iorubá akara (bola de fogo) e jê (comer).
No ano de 1992, Isabel migra da quadra para as areias e inicia uma carreira, também vitoriosa, no vôlei de praia. Conquistou inúmeras medalhas de ouro, prata e bronze nas etapas de mundial da modalidade e ajudou a consolidar o Brasil como potência no vôlei de praia. Nos anos de 1999 e 2000, Isabel retorna ao Flamengo para atuar como técnica da equipe feminina de vôlei de quadra. Por sua trajetória esportiva, em 2016 nas Olimpíadas do Rio de Janeiro, Isabel foi uma das atletas eleitas para conduzir a tocha olímpica.
A partir de 2008, a já ex-atleta passa a gestar e acompanhar a carreira de seus filhos jogadores de vôlei de praia. Foi na função de gestora que defendeu a filha Carol em 2020, após a mesma ter gritado “Fora Bolsonaro”, postura política que também é parte da herança: de mãe para filha. Por ter sido uma voz politicamente atuante e representativa no seu meio, Isabel estava sendo cotada para ser uma das lideranças do esporte no terceiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva, que tomou posse em 01 de janeiro de 2023.
Fato que não se concretizou, pois em 16 de novembro de 2022, aos 62 anos de idade, Isabel faz sua passagem para Orum (céu dos orixás), deixando o esporte brasileiro de luto. Certamente conduzida por Iansã, que é responsável por transportar os mortos do Aiê (terra dos humanos).
O conjunto dos feitos de Isabel Salgado, em seu caminho por este plano, representa um legado de persistência e luta junto ao esporte feminino. Isabel é uma mulher bélica, um corpo que cabe perfeitamente no canto de uma das filhas ilustres de Iansã, Maria Bethânia, quando vibra em suas cordas vocais os versos[5]: “Senhora das nuvens de chumbo”, “Rainha dos raios”, “Deusa pagã dos relâmpagos”. Suas jogadas, dentro e fora das quadras, podem ser comparadas ao chamado “efeito borboleta”, que está ligado à Teoria do caos, representando a ideia de que qualquer movimento, por menor que seja, reverbera no curso dinâmico da vida. Por tudo isso te saudamos com admiração: “Olá Isabel!”, “Eparrey Oyá!”.