O clima era de festinha de sábado – som beatle a cargo do DJ Chris Holmes, que mandou até um “In my life” em versão “Minha vida” de Rita Lee para o público de 66 mil pessoas no Maracanã. Fim de um dia ensolarado (em que o mestre da bossa nova Carlos Lyra fez sua partida dessa existência), imagens aninadas de Paul McCartney nos telões, temperatura e aglomeração suportáveis, amigos se reencontrando, burburinho, cartazes com o “Na Na” em punho… só faltava mesmo o Paul.
- ‘Experiência mágica’: Os bastidores do convite de Paul que levou estudantes de música para ensaio
- Em Brasília: Hits dos Beatles, homenagem a John e George e ‘Boa noite, véi’ para o público
E às 21h03 ele surgiu no palco baixo e sem rampa, acenando para o povo com seu velho baixo Hofner e engatou em “Can’t buy me love” — era o som de festinha, não tão alto e nem tão estridente que o público aguardava. “Junior’s farm”, dos tempos setentistas dos Wings manteve o clima cálido — e o set list nos trilhos. “Oi, Rio, qual é, cariocas?”, interveio um Paul tranquilão, de terninho e com barba por fazer, antes de seguir com outra dos Wings, “Letting go” — reforçada por um naipe de metais no meio das arquibancadas — efeito visual, por sinal, bem explorado.
Paul McCartney, 80 anos: veja fotos da carreira do cantor
“Está noite vou tentar falar um pouquinho de português”, disse Paul e, em seguida, mandou em inglês “essa é uma velha canção dos Beatles”. Era “She’s a woman”, outra em levada de bailinho de sábado, com direito a alguns arroubos de animação de Paul (“Rio de Janeiro!”, cantarolou). Já no palco, os metais deram o toque necessário a “Got to get you into my life”, uma das melhores dos Beatles no departamento soul-Motown.
“Esta é uma música nova… um pouquinho nova”, voltou Paul ao português para anunciar “Come on to me”, de sabor sessentista, apesar de lançada em 2018. A saída do Hofner é a chegada às mãos do inglês de uma guitarra Gibson Les Paul vermelha cheia de adesivos indicou a mudança de mood do show para o rock mais áspero de “Let me roll it”, dos Wings. E assim o repertório flui sem transtornos para uma dos Beatles, “Getting better”, caprichada nas harmonias vocais. No seu ritmo, mas sem aparentar cansaço, Paul parecia se divertir tanto quanto o público.
Hora de Paul ao piano, e logo com um dos seus hits dos Wings, “Let me in”, uma daquelas canções cálidas, arranjadas com apuro e executadas com sentimento — o supra-sumo de uma era de ouro das rádios FM, da qual o beatle foi um dos arquitetos. Um piano-rock dos Wings, “Nineteen Hundred and Eighty-Five”, na sequência, fez as honras para a apoteose em “Maybe I’m amazed”, com um Paul McCartney de 81 anos fazendo o melhor e humanamente possível para recriar o Paul de 30 anos.
“Eu escrevi essa canção para a minha amada esposa Nancy – e ela está aqui hoje!”, festejou o cantor, ainda apresentou piano, antes de cantar “My Valentine”, quebra para um ponto mais calmo e acústico do show, que seguiu com ele ao violão pela country “I’ve just seen a face”, dos Beatles. “Hora de voltar no tempo a um pequeno lugar chamado Liverpool, essa é a primeira canção que os Beatles gravaram”, seguiu Paul no seu português-inglês antes de mandar “In spite of all the danger” – ponto esperado de um show que, em sua primeira hora, teve muita emoção, mas nenhuma das surpresas que se esperaria ter num Maracanã, num último show da turnê Got Back.
Homenagens a John e George
Daí, Paul conduziu o público para 1962, tempos do primeiro LP dos Beatles, com a produção e arranjos de George Martin. Com o seu inconfundível toque de gaita, “Love me do” abriu a parte do show de maior interação com o público, que teve um terno “Blackbird” só ao violão (e coro de um Maracanã), seguido de um “Here today” para o amigo John Lennon – sozinho no palco, Paul era ali o beatle diante da multidão, sem titubear..
De volta com a banda, o balanço boogie da beatle “Lady Madonna”, impulsionado pelos sopros, reacendeu o ânimo festeiro do público no sábado. “O pai tá on”, até gracejou Paul antes de dedicar o animado rock “Jet”, dos Wings, a Denny Laine, recentemente falecido guitarrista do grupo. “Being for the benefit of Mr. Kite” lembrou a psicodelia pop-barroca do disco “Sgt. Peppers” dos Beatles e o ‘Something” ao ukelele, em tributo ao “brother” George Harrison, cumpriu o esperado roteiro de emoções do show de Paul McCartney.
Hora dos balõezinhos, e lá veio “Ob-la-di, ob-la-da” para criar as condições ideais de animação. “O Maraca é nosso!”, pontuou McCartney para delírio da torcida, que logo depois se esbaldou com o clássico das FMs “Band on the run”, uma verdadeira montanha russa de sensações comprimida em uma só canção.
Clímax com ‘Hey Jude’… e mais hits
Quase duas horas de show e Paul ainda tinha energia (embora nem tanro a voz) para puxar um “Get back” e empurrar a galera para a parte final do seu show. Aquele em que ele obrigatoriamente envereda por “Let It be” (comovente qualquer que seja o ânimo com que os músicos a executem) e pela pirotecnia nervosa de “Live and let die” — a única em que pareceu ser estranho para o astro octogenário, àquela altura de fato fatigado, por mais que tentasse não demonstrar.
Mas tudo isso não importou diante da canção seguinte, “Hey Jude”, uma daquelas que operam.o milagre de carregarem-se sozinhas. Um triunfo do Paul compositor, que o intérprete acabou sendo condenado a cumprir noite após noite, com coral da plateia e um mar de cartazes “Na Na’. Mas quem iria, em.sã consciência, querer se desviar dessa maldição? Gritando junto com o público, o inglês mostrava que não era ele que iria fugir ao destino, de um público que seguiu cantando mesmo depois de ele ter saído do palco.
Seguir com o show depois de um clímax desses: não é um problema para Paul McCartney. Basta cantar “I’ve got a feeling” com a banda e um John Lennon virtual. Ou sacar um “Birthday” para os aniversariantes do dia. Meter “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” e “Helter Skelter” só para lembrar os Beatles mais selvagens (e tirar forças sabe-se lá de onde). “Agora é hora de voltar… quero vazar!”, anunciou Paul em português mesmo. E iniciou ao piano a inevitável “Carry that weight” seguida de “The End”. E às 23h35 , com o bônus de sozinhos de guitarra de Paul, tudo tinha terminado. Como estava escrito. “Tudo que posso dizer é… fui! Até a próxima!”, despediu-se, sob chuva de papel.
Foi só um show de Paul McCartney, podem reclamar alguns. Protocolar, sem surpresas, sem Ringo Starr ou o que mais a imaginação possa projetar. Mas, ainda assim, é muita coisa. É a presença viva de um dos grandes cantores e compositores da música popular do Século XX, fazendo em 2023 algo que parece ter ficado lá naquele século: um grande espetáculo com grandes canções, tocado ao vivo, em simbiose com o público. Quando Paul de fato se aposentar dos palcos, não restará muita gente para fazer isso.
Veja setlist completa do show de Paul McCartney no Rio
- “Can’t Buy Me Love”
- Juniors Farm”
- “Letting Go”
- “She’s A Woman”
- “Got To Get You Into My Life”
- “Come On To Me”
- “Let Me Roll It”
- “Getting Better”
- “Let Em In”
- “1985”
- “Maybe I’m Amazed”
- “My Valentine”
- “I´ve just seen a face”
- “In spite of all the danger”
- “Love Me Do”
- “Dance Tonight”
- “Blackbird”
- “Here Today”
- “New”
- “Lady Madonna”
- “Jet”
- “Being for the Benefit of Mr. Kite!”
- “Something”
- “Ob-La-Di, Ob-La-Da”
- “Band on the Run”
- “Get Back”
- “Let It Be”
- “Live and Let Die”
- “Hey Jude”
- “I’ve Got a Feeling”
- “Birthday”
- “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”
- “Helter Skelter”
- “Golden Slumbers”
- “Carry That Weight”
- “The End”