Caminhava pelo Parque Marinha do Brasil, me esgueirando pelas sombras, na manhã de um domingo. Naquele horário em que o sol ainda não castiga, mas já anuncia que o dia vem. E vem quente. Era um domingo atípico naquele ponto da Orla. Cedo da manhã, estar correndo, pedalando ou mesmo tomando um mate eram atitudes que destoavam do cenário ao redor. Um dia em que estar com – pouca – roupa colorida era a lei.
Desfilava na avenida o Bloco da Laje. Em sua décima primeira saída de rua, mais uma vez, o bloco arrastou uma multidão, trajada em amarelo, azul e vermelho de amor. Artistas, gente da rua, tendo o astro-rei como condutor. E era do forçado convívio com esse timoneiro real da alegria que eu me esquivava, sob as árvores do parque, quando o som chamou.
E foi uma pedrada.
“Se vira! Se vira pra descolar um dinheiro”, dizia o primeiro verso. “Anima! Nossa vida é o que importa”, seguia a letra. Pô, quer um começo de letra mais carnaval do que esse? Arrumar um trocado e curtir a folia, porque a nossa vida é o que importa.
A batida era de suinge, ritmo gaúcho (parente do sambalanço, no Rio, e do samba rock, de São Paulo) que foi consagrado por Bedeu e pelo Grupo Pau Brasil e que influenciou importantes artistas país afora, como Jorge Ben, Bebeto e Originais do Samba.
Na sequência, entrava o cavaco, com uma batida que trouxe a Bahia para a mistura. Uma pegada de samba de roda, que no meio da bagunça, lembrava também o pagodão baiano. Bum! Uma pedrada mesmo, manja?
Logo saquei que se tratava de música nova, já que o bloco traz novidades todos os anos. De pronto, joguei a letra no Google e, para minha surpresa, não se tratava de composição da Laje, mas de um rock: “Se Vira”, do músico Fughetti Luz.
Nascido Marco Antonio de Figueiredo Luz, em 1947, no município de São Francisco de Paula, Fughetti foi um dos precursores do rock and roll no RS e no país. Ainda na década de 1960, Fughetti fundou a banda Liverpool. Nos 70, criou o Bixo da Seda. Cantor e compositor, pode ser considerado pai ou avô da geração mais famosa de roqueiros gaúchos, dos anos 80, da qual também participou. O músico deixou ainda três discos solo (Fughetti Luz, de 1998; Xeque-Mate, de 2002; e Tempo Feiticeiro, de 2017) antes de falecer, em 14 de abril de 2023.
Fughetti recebia naquele momento uma justa homenagem. Além disso, três importantes movimentos culturais que floresceram nesta mesma porção de terra da ponta de baixo do Brasil em momentos históricos diferentes se encontravam às margens do Rio Guaíba: o rock gaúcho, o suingue e o carnaval dos blocos de rua. E com um tempero do dendê baiano.
A versão original de “Se Vira” é um rock com arranjo simples e direto. No bloco, a composição ganhou um versão com metais, harmonia e bateria.
“O Chico, que é fã do Fughetti, trouxe a sugestão e já veio com a ideia de um samba rock. Aí a gente fez essa levada, principalmente no surdo e nas caixas. Só que o cavaco, quando entra, ele faz um chorinho que é do samba de roda. O Jonas Santos, do cavaco, que trouxe esse aspecto. Ficou um clima meio irônico e dramático. É um som de um compositor daqui e a versão tem todas essas aberturas, do samba rock, dos ritmos do recôncavo baiano”, explica o músico Vini Silva, diretor musical e mestre de bateria.
“Chico”, a quem Vini se refere é Chico Macalão, diretor de produção, brincante e porta bandeira do Bloco da Laje. Ele explica que a ideia era “espalhar a palavra de um dos maiores roqueiros do Brasil”. “Felizmente a tecnologia nos permite ouvir de tudo um pouco e o “Se Vira” é uma música que ficou na cabeça. Aí um dia, tomando uma ceva, comecei a fazer um téc tic tananã… E surgiu. Botei a ideia na roda em um momento de escolher novas músicas para repertório do bloco. Entre 12 ou 13 músicas, escolhemos quatro. Comentei com a filha do Fughetti, a Shanti Luz. Mandei uma gravação e ela deu a bênção”, conta Chico, que integra também a banda Fughettaço, que homenageia o músico.
Em 2018, a Laje desfilou no IAPI, bairro onde cresceu Fughetti. Chico recorda que, na ocasião, o bloco homenageou o roqueiro, tocando “Nosso lado animal”. Em gerações anteriores, foi o rock and roll a força cultural que movimentou o público jovem desta aldeia gaulesa do Sul do mundo. Quem juntava centenas ou milhares de jovens nas ruas da capital, atraídos pela música, eram bandas como TNT, Cascavelletes, Graforréia Xilarmônica e Bandaliera.
Hoje, com outros ritmos e cores, pode-se afirmar que são os blocos do carnaval de rua a grande potência cultural que se apresenta e mostra força para atrair multidões ano após ano. Basta lembrarmos que essa onda de carnaval de rua, nascida na Cidade Baixa, na primeira década dos anos 2000 com blocos como Areal do Futuro e Maria do Bairro, há tempos extrapolou o bairro e se espalhou pela capital. Este ano, mais de 80 blocos descentralizados desfilarão pelas ruas do Centro, Orla, Lomba do Pinheiro, Restinga e outros bairros.
E no meio desse contexto todo, o rock do Fughetti se encaixou no carnaval com perfeição. Vini Silva conta que teve gente que achou que a música era do bloco, por ter uma “cara muito lajuda”. Em um domingo tomado pela festa profana, aqueles versos pareciam mesmo ter sido escritos para um bloco. “Espalha que nós estamos aqui pra cantar o sol e não pra rezar.”
“Botei a ideia na roda em um momento de escolher novas músicas para repertório do bloco. Entre 12 ou 13 músicas, escolhemos quatro. Comentei com a filha do Fughetti, a Shanti Luz. Mandei uma gravação e ela deu a bênção”
Chico Macalão
ROQUEIROS NA FOLIA
Essa ponte no tempo e no espaço cultural sulino não é inédita. Já faz alguns anos que o carnaval de rua de Porto Alegre reverencia os roqueiros locais.
Pelos idos de 2012, a Turucutá adotou ao seu repertório um dos maiores clássicos do rock gaúcho. “Amigo Punk”, da Graforréia Xilarmônica, teve os riffs de guitarra substituídos pela bateria do bloco. Na época, quem comandava caixas, bumbos, tamborins e agogôs da Turucutá era o mesmo Vini Silva, que hoje puxa a percussão do Bloco da Laje.
O próprio Fughetti Luz já teve sua obra passeando de trio elétrico pelas ruas da capital em outras ocasiões. O bloco do Império da Lã, criado pelo músico Carlinhos Carneiro, adotou em seu repertório a música “Nosso Lado Animal”. Duas versões da música, estão disponíveis nas plataformas de áudio. Além, é claro, da versão original de Fughetti Luz.
A tradicional Banda Saldanha já tocou “Dívida”, da Ultramen. E certamente, haverá outros exemplos.