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MEMÓRIA: Abilio Diniz, um pioneiro do varejo que extraiu o máximo da vida

MEMÓRIA: Abilio Diniz, um pioneiro do varejo que extraiu o máximo da vida

Abilio Diniz, que transformou o supermercado brasileiro, desafiou a bancarrota, superou brigas dentro e fora da família e fez da saúde uma catequese, morreu neste domingo de complicações de uma pneumonia.

Ele tinha 87 anos.

Abilio estava em tratamento intensivo há cerca de um mês no Hospital Albert Einstein.

“Hoje perdemos um grande brasileiro,” Roberto Setúbal, o chairman do Itaú Unibanco, disse ao Brazil Journal. “Convivi com Abilio em diversos momentos, às vezes do mesmo lado, às vezes em lados opostos da mesa. Admirava-o pela coragem. Sempre defendeu seus pontos de vista com determinação e convicção. Foi não apenas um grande empresário, mas também um ser humano extraordinário que viveu a vida intensamente sob todos os aspectos. Ele vai, mas ficam muitas lições de vida.”

Jean-Charles Naouri, seu ex-sócio e ex-adversário, com quem Abilio já estava em bons termos, disse que recebeu a notícia “com profunda tristeza.”

“Nesse momento de dor, gostaria primeiro de me solidarizar com sua família, a quem Abílio se dedicou durante toda sua vida,” disse Naouri. “Abílio foi um empreendedor incansável e que acima de tudo jamais abandonou seu otimismo com o Brasil. Seu nome será sempre lembrado como um dos maiores do varejo alimentar no mundo.”

São Paulo, a cidade onde Abilio nasceu e morreu, testemunhou todos os grandes lances de sua vida: seu sequestro com final cinematográfico, os M&As bilionários, a obsessão pelo esporte, suas brigas de rua e societárias, e uma recente incursão no mundo dos talk shows.

Junto com o pai, Valentim, Abilio abriu a primeira loja do que viria a ser o Grupo Pão de Açúcar no fim da década de 50, na Avenida Brigadeiro Luís Antônio. Foi pioneiro em muitas frentes. Lançou o primeiro hipermercado, o primeiro supermercado em um shopping, as primeiras farmácias dentro das lojas, e criou a primeira ouvidoria do varejo.

Como em todo império familiar, teve que lidar com disputas de poder. No fim da década de 70, colocado de escanteio pela própria família, abrigou-se em uma função de governo no Conselho Monetário Nacional como representante da iniciativa privada. Foi o que ele mesmo mais tarde chamou de sua “década perdida”. Acabou retornando ao Pão de Açúcar só no fim da década de 80, a pedido do pai, para salvar o negócio.

Foi então que assumiu o controle majoritário do grupo, e mesmo em meio ao confisco do Governo Collor, implementou uma drástica política de corte de custos que permitiu à empresa sobreviver. Os 47 mil funcionários viraram 17 mil. O Palácio de Cristal criado pelos irmãos no ano que ficou ausente foi vendido. As 626 lojas espalhadas pelo País viraram 262. Neste meio tempo, em 1995, lançou ações na bolsa e fez do GPA a primeira empresa com capital 100% nacional a fazer uma oferta global.

Mas como evitar a bancarrota é uma missão quase diária no varejo, Abilio atraiu um sócio internacional e se comprometeu a abrir mão do controle no que então lhe parecia um longínquo 2012.  Acabou brigando.

Muitos foram os “reis do varejo” que surgiram como cometas no firmamento brasileiro. Mas Abilio pertence ao panteão, ao lado de Samuel Klein, o fundador das Casas Bahia.  Enquanto esteve à frente do GPA, Abilio comprou a empresa dos herdeiros de Klein, e depois a fundiu ao Ponto Frio criando a Via Varejo.

Sua morte vem no momento em que o varejo está sendo refundado por novos reis e impérios mundiais de ecommerce – ao mesmo tempo em que, ironicamente, o velho modelo de negócios do GPA, o supermercado de bairro, próximo do cliente, parece estar voltando à moda.

Abilio dos Santos Diniz nasceu em 28 de dezembro de 1936 em uma casa da rua Vergueiro, no bairro do Paraíso, o primeiro dos seis filhos de dona Floripes Pires e seu Valentim, um imigrante português que chegara ao Brasil em 1929. O navio atracou no Rio de Janeiro, e a primeira paisagem que conquistou Valentim foram as curvas do morro do Pão de Açúcar.

Com 12 anos, Abílio começou a trabalhar na doceria do pai, batizada com o nome do cartão postal. Em 1959, ao se formar em Administração de Empresas na FGV, Valentim o convidou para abrir um supermercado.

No ano seguinte, passou quatro meses na Europa para aprender como o varejo funcionava por lá. Em 1963, inaugurou a segunda loja, na rua Maria Antonia, em Higienópolis. Dois anos depois começou a adquirir os concorrentes; nunca mais parou. Foi nesta época que começou a praticar esportes de velocidade. Disputou provas de motonáutica e chegou a ser tricampeão brasileiro.

Ainda na década de 1960 Abilio se casou com Auriluce, com quem teve quatro filhos: Ana Maria, João Paulo, Pedro Paulo e Adriana. O seu segundo casamento aconteceria em 2004, quando encontrou a economista Geyze Marchesi em um evento do Pão de Açúcar. Com Geyze, Abilio teve Rafaela, hoje com 17 anos, e Miguel, com 14.

Foi na Várzea do Glicério, um bairro que abriga cortiços na região central de São Paulo, que Abílio viu nascer seu gênio forte, atrevido, ousado, briguento e agressivo. Um moleque gordinho com corpo de pudim, sofria bullying dos colegas do futebol. Lidou com isso aprendendo a lutar boxe – e a resolver seus problemas em campo. Ele mesmo costumava dizer que a luta o tornou forte, mas também atrevido e agressivo demais.

Tão atrevido que só foi sequestrado no fim da década de 80 porque se recusava a andar com seguranças. “Eu pensava: brigo bem, atiro bem, sou treinado por israelenses, quem vai se meter comigo?”, ele disse ao Flow Podcast em 2021.

O episódio do sequestro ficou famoso não só porque Abilio era um dos mais proeminentes empresários do País, mas também porque foi solto na véspera da eleição de 1989, quando a disputa opôs Lula e Fernando Collor de Mello.

No cativeiro, em uma casa no Jabaquara, surgiram fotos de material de campanha de Lula. Por ironia, foi justamente a administração de Collor que quase levaria o Pão de Açúcar à falência.

Em entrevistas, Abílio contou que por vezes seus próprios seguranças lhe davam gravatas para impedi-lo de bater em pessoas na rua, como um motorista de ônibus que raspou seu carro. Quando encontrou Geyze, ela lhe deu um ultimato, e Abilio aquietou o facho. Os amigos também atribuem à influência de Geyze uma mudança em sua personalidade nos seus últimos anos, para uma pessoa mais humana e amiga.

Se as brigas de rua se tornaram coisa do passado, as grandes brigas societárias estavam só começando.

A mais famosa delas foi com seu sócio francês, o Groupe Casino, personificado em seu controlador e CEO, Jean-Charles Naouri. Esta acabou sendo uma das maiores disputas societárias da história do Brasil, com inúmeras reviravoltas envolvendo um tudo ou nada que alimentou a sanha de banqueiros, advogados e consultores durante anos.

Diniz e Naouri conheceram-se em Paris, em 1998, em um jantar organizado por Jean Claude Meyer, então CEO da Banque Rothschild, o banco de investimento de maior prestígio na França, onde inclusive trabalhava o atual presidente francês, Emmanuel Macron.

O jantar foi no apartamento de David René de Rothschild, representante da elite francesa e principal acionista do banco. Localizado na Rue de Tournon, o apartamento era um dos mais prestigiados de Paris, com vista para o Jardim de Luxemburgo e uma pintura de Rembrandt pendurada na parede.

Pouco depois desse jantar, Abilio e Naouri iniciaram negociações para o Casino investir US$ 1 bilhão em uma participação de 24,5% no GPA, em 1999 – na época, o maior investimento estrangeiro em uma empresa varejista brasileira. Naouri ingressou no conselho do GPA e apoiou Diniz em todas as suas iniciativas.

Em 2005 o GPA precisou de nova capitalização, e o Casino investiu mais US$ 1 bilhão em troca de assumir o controle em 2012.

As pessoas que conheciam Abilio e Naouri contam que a relação entre os dois nunca foi próxima, dada a abissal diferença de personalidades. Abílio era intuitivo, esportista, expansivo, tirando da vida tudo o que ela podia oferecer; Naouri era racional, introspectivo, intelectual, erudito.

Mas a relação dos dois foi bastante cordial até 2010, o ano em que Naouri considerou que Abílio começou a hesitar em honrar a transferência de controle do GPA.

Há dois anos, Abilio disse ao Flow Podcast que lá em 2005, quando os franceses fizeram o segundo aporte no GPA, ele acabou não tomando todos os cuidados que devia ter tido.

“Ficaram muitas coisas ao acaso e daí deu-se a briga. Quando vai fazer contrato, vai na loucura do detalhe. Mas não faça contrato mal feito. Olha bem o que está escrito. Não pega e acha que não tem nada importante e assina.”

Não é bem assim que os consultores que acompanharam de perto a briga com o Casino avaliavam a situação. A sensação era de que, mesmo já se aproximando dos 75 anos, Abilio desfilava vigor físico e de saúde, tinha dois filhos pequenos, algo que talvez não tivesse previsto quando fez o acordo anos antes.

Faltando um ano para ter que entregar seu império aos franceses, sua última jogada foi propor uma grande fusão internacional.

Conseguiu o apoio do governo, do BNDES e do Carrefour – mas não teve jeito de convencer Naouri. Foi ali que a briga começou para valer, com algumas fontes estimando que Abilio e Naouri tenham gasto quase US$ 1 bilhão com banqueiros, consultores e advogados.

Depois de muitas idas e vindas, Naouri e Abilio precisaram de um negociador com experiência para enfim chegarem a um acordo.

Em 2013, William Ury, um professor de Harvard que negociara com as FARC em nome do Governo da Colômbia, representou Abilio em uma negociação com David de Rothschild, que representou Naouri.

Fumaram o cachimbo da paz.

Abílio recebeu um cheque gordo por sua participação no GPA, múltiplas vezes o valor de toda a empresa hoje, e ficou livre de restrições para competir no varejo.

Vislumbrando um empresário sem empresa, José Carlos Reis de Magalhães, o Zeca da Tarpon, convenceu Abílio a uma nova empreitada: a BRF, uma das maiores empresas de alimentos do Brasil e do mundo. Abílio logo pulou no novo barco, comprou uma participação na BRF e assumiu a presidência do conselho.

Sua passagem pela companhia lhe rendeu uma relação conturbada com os fundos de pensão, também sócios do negócio. No inferno astral que se seguiu, Abilio teve que lidar até com a Polícia Federal, numa operação intitulada Carne Fraca.

Se a carne era fraca, nunca ficou comprovado. Fraco mesmo foi o resultado que os executivos que Abilio escolheu para transformar a BRF apresentaram enquanto ele esteve à frente do conselho. Com resultados ruins, ele acabou destituído pelos fundos de pensão. Quando vendeu sua participação na empresa, em 2018, Abilio fez pouco caso e disse que iria buscar “outros brinquedinhos para se divertir”.

Órfão de seu supermercado mas ainda desconfortável na posição de mero bilionário, Abilio viu a oportunidade de voltar ao setor em 2014: investiu no Carrefour Brasil e logo em seguida se tornou o terceiro maior acionista do Carrefour global.

Passando a frequentar Paris, Abilio se aproximou de desafetos de Naouri na elite francesa, como Alexandre Bompard e Philipe Houzé. Mas quando o Casino também entrou em colapso, Abilio estendeu a mão ao antigo adversário e o visitou algumas vezes em Paris.

Naouri confidenciou a pessoas próximas que nos últimos anos Abílio tentou ajudá-lo na França e nos Estados Unidos, uma destas pessoas disse ao Brazil Journal.

O investimento no Carrefour Brasil foi muito rentável, mas o mesmo não aconteceu com o dinheiro que aportou na França. Abilio entrou no Carrefour mundial pagando uma faixa de € 33-37 por ação; o papel hoje negocia a € 15.

Além disso, Abilio se frustrou com a estrutura arcaica de governança na França, onde o CEO e diretores têm mais poderes do que conselheiros e acionistas. Apesar de deter 8% do capital da empresa, ele quase não tinha voz no Carrefour, e estava avaliando formas de sair do investimento.

Suas participações no Carrefour são administradas pela Península Investimentos, a empresa que gere seu patrimônio e administra suas participações societárias.

“Quando eu estava na distribuição no GPA eu brincava que nessa encarnação eu estava na distribuição, mas na próxima queria ir para o setor financeiro. Muita inspiração, mas muito menos transpiração,” ele disse ao Flow Podcast sobre a Península, que seria sua entrada no setor financeiro.

De acordo com a revista Forbes, o patrimônio de Abilio era de cerca de R$ 13 bilhões no início de 2023.

Com sua morte, fica em aberto o futuro de suas participações. Além do Carrefour, a Península tem participação em empresas como a Wine.com e um império de lojas alugadas ao GPA e ao Assaí estimado em mais de R$ 3 bilhões.

Os últimos anos lhe reservaram o mais duro golpe, maior ainda que o sequestro ou qualquer briga.

Em 2022 seu filho João Paulo – um esportista que assim como o pai esbanjava saúde – morreu de um ataque cardíaco.  Tinha apenas 58 anos.

Nas redes sociais, Abilio desabafou: “Mais do que pai e filho, éramos quase irmãos, dois grandes amigos. Para mim, o mundo nunca mais será o mesmo, falta um pedaço de mim. Estou me reinventando e sei que tenho que seguir em frente pela minha família e pelo meu país neste momento tão importante, mas ainda sinto uma saudade enorme deste meu amigo que me deixou. João, meu filho, sempre te amarei”.

Abilio será enterrado ao lado de João Paulo.




Josette Goulart e Geraldo Samor