“Aprender mesmo a gente aprende quando o saber não é mercadoria. Quando é com mestres e mestras, eles não cobram. Eles ensinam para manter o conhecimento vivo. Quando você compartilha o saber, o saber só cresce. É como as águas que ‘confluenciam’. Quando o rio encontra o outro rio, ele não deixa de ser rio. Ele passa a ser um rio maior”. As palavras do ativista e pensador quilombola Antônio Bispo dos Santos, mais conhecido como Nêgo Bispo, descrevem a que ele dedicou boa parte da sua vida, interrompida aos 63 anos por duas paradas cardíacas no último domingo (3).
Nesta segunda-feira (4), Bispo foi velado ao som de cantos e atabaques na comunidade quilombola Saco Curtume em São João do Piauí (PI), onde vivia.
Uma das maiores referências do movimento quilombola da atualidade, poeta, lavrador e autor de dois livros – A terra dá, a terra quer (Ubu, 2023) e Colonização, quilombo: modos e significações (UnB, 2015) –, o piauense Nêgo Bispo afirmava que atualmente os quilombolas estão presentes “não como pessoas que devem ser ajudadas, mas como pessoas que ajudam. Hoje nosso modo de vida é referência”.
Amigo de Bispo, o mestre Joelson Ferreira, do Assentamento Terra Vista do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), conta que “ele falava muito da importância da unidade entre os povos”. Integrante da Teia dos Povos, da qual Nêgo Bispo também era mestre, Joelson lembra uma frase sua: “Quando as favelas e os guetos perdem o medo de se juntar com os povos originários e dos quilombos, o asfalto derrete”.
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Um dos criadores da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), Bispo cunhou o conceito de contracolonialismo para se referir à prática histórica de povos que recusam a colonização. Em 2024, seu novo livro, Colonização e quilombo, milagres e feitiços, será lançado pela Cia das Letras.
“Outra questão importante que Nêgo Bispo deixa para nós e que ele trouxe na sétima Jornada de Agroecologia da Bahia feita pela Teia dos Povos, é referendar muito as lutas do passado. Ele afirmou que nós precisamos encontrar nessas lutas os caminhos para escrever o futuro que a gente quer”, relata Joelson.
“Vou aprender a ler pra ensinar meus camaradas”
Nascido na comunidade Saco do Curtume, no Piauí, Nêgo Bispo foi o primeiro alfabetizado de sua família. Fazendo lembrar a canção Yayá Massemba, de Roberto Mendes e Capinam, gravada por Maria Bethânia, que diz “vou aprender a ler, pra ensinar meus camaradas”, a decisão de enviar o menino quilombola para a escola foi comunitária. Era preciso que alguém dominasse a escrita para compreender os contratos de regularização de terras impostos pelo Estado brasileiro.
Estudou até o nono ano e, com o que aprendeu, além de traduzir as burocracias do mundo dos brancos, lia e escrevia cartas, ajudava na contabilidade dos comércios, na organização das festas. Passou alguns anos indo e vindo do Rio de Janeiro e, em 1983, quando voltou a se dedicar unicamente ao trabalho na terra, foi uma conversa com sua mãe Pedrina que lhe deu uma virada de chave.
“Meu filho, você estudou para ajudar nós, não estudou só para você. Se você tá cuidando só da sua roça, então o saber que nós lhe demos está perdido. Você precisa dizer ao povo as coisas que sabe”, sua mãe lhe disse, conforme Nêgo Bispo contou à revista Revestrés. Foi o que fez.
Se tornou presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Francinópolis – foi aí que ganhou o vulgo Nêgo – e integrou a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Piauí (Fetag-PI) e o Partido dos Trabalhadores (PT). Depois de um tempo, considerando que as organizações que compunha não compreendiam as especificidades da luta quilombola, como se esta fosse separada da “luta de classes”, se retirou no início dos anos 1990.
“Se você acredita que o fato de um trem ter muitos vagões e você poder escolher o vagão que vai entrar qualifica sua viagem – parabéns! Se você acredita que o fato de um trem ter um maquinista ruim e um sub-maquinista bom, vai mudar o rumo da sua viagem – parabéns! Você deve acreditar, inclusive, que o trem sai da ferrovia e vai andar na hidrovia”, afirmou Nêgo Bispo: “Eu compreendo que um trem só vai para onde os trilhos determinam. Se o Estado é colonialista, todo e qualquer governo será também colonialista”.
A não personificação das lutas
“Inaugurador de conceitos, Nego Bispo traz a nós, através de seus versos, livros e caminhadas, a necessidade de alimentar a justa rebeldia, mas também a leveza, a simplicidade, as sensibilidades do cotidiano e o prazer de viver construindo a vida digna”, ressalta nota da comunicação das Teias dos Povos enviada ao Brasil de Fato: “É um ser radicalmente coletivo, e por isso nos inspira”.
De fato, o ativista quilombola criticava a redução de processos históricos de luta em apenas algumas figuras. Segundo ele, movimentos que tomam “como referência partidos e organizações sindicais” e que consideram “que dá para resolver as coisas entrando para a lógica da inclusão ao sistema, acabam repetindo cenas como essa de homenagear Zumbi dos Palmares”.
“Palmares existiu antes de Zumbi e continuaria existindo sem ele. Zumbi é que não existiria sem Palmares. A referência não é Zumbi, é Palmares. Assim como a referência não é Antônio Conselheiro, mas Canudos; não é beato Zé Lourenço, mas Caldeirão; não é Senhorzinho, mas Pau de Colher. Essa história de personificar a luta dá no que deu”, resumiu.
“Sempre fruto de vivências na luta, das confluências com povos contra-coloniais”, salienta nota da Teia dos Povos, “os seus livros, poemas e palavras, ficam como referências necessárias nas ciências humanas e na literatura, que com certeza inspirarão a ‘geração neta’, como o mestre gostava de se referir à juventude”.
Em outro de tantos vídeos de falas suas, Nêgo Bispo expõe o que é a relação com a ancestralidade. “Você tem que assumir o compromisso que vai ensinar tudo o que lhe ensinei para quem precisar. E enquanto você ou alguém que aprendeu com você está ensinando, passando para frente o nosso conhecimento”, explica o mestre: “eu estarei vivo, mesmo enterrado”.
Edição: Rebeca Cavalcante