Tradução do espanhol por:
Gilmar Ferreira Mendes
Doutor em Direito pela Universidade de Münster (Alemanha), professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), onde é diretor do Centro Hans Kelsen de Estudos sobre a Jurisdição Constitucional, e ministro do Supremo Tribunal Federal.
e
Paulo Sávio Nogueira Peixoto Maia
Coordenador-Executivo do Centro Hans Kelsen de Estudos sobre a Jurisdição Constitucional, do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), doutorando (USP) e mestre (UnB) em Direito e advogado.
O presidente da Argentina discursou no World Economic Forum, na cidade de Davos, no último 17 de janeiro. Leu um texto por 20 minutos. Na peça de mais de 3.600 palavras, o presidente eleito por uma maioria de cidadãos referiu-se expressamente, por três ocasiões, às ideias de “justiça social”. Peremptoriamente, negou que esse princípio fundamental e reitor possa conduzir à igualdade de oportunidades e a modelos racionais de equidade na distribuição de bens e direitos na sociedade. Desde 1983, nenhum dos sete presidentes eleitos na forma constitucional – também por uma maioria de cidadãos – chegaram a negar ou rechaçar a justiça social; ao contrário, procuraram dela se avizinhar. Assim, por exemplo, aconteceu com Raúl Afonsín (1983-1989); Néstor Kirchner (2003-2007); e Cristina Fernández de Kirchner (2007-2011 e 2011-2015); até mesmo Carlos Menem, cujos governos de matiz fortemente autocrático (1989-1995 e 1995-1999) caminharam à desigualdade e a certo desmonte institucional, costumava apelar, em suas aparições públicas, a concepções igualitárias que envolviam profecias – que obviamente não se realizavam.
Há uma triste novidade na atual condução presidencial do processo constitucional: a negação completa e a promoção da desnaturalização da justiça social. Em outras palavras, o presidente nega a própria ideia de justiça social que determina o rumo do planejamento estatal programado pela Constituição Federal da República, desde o processo de paz.
Na literatura, a justiça social é uma ideia que nasce no século 19, muito provavelmente formulada por Luigi Taparelli em seu Ensaio Teórico de Direito Natural Apoiado nos Fatos. Fortalece-se e desenvolve-se no século seguinte, em especial na Constituição Mexicana de 1917. Também cabe mencionar, à guisa de exemplo, que em 1931 sua formulação concreta e expressa foi enunciada na Carta Encíclica Quadragesimo Anno: “Cada um deve pois ter a sua parte nos bens materiais; e deve procurar-se que a sua repartição seja pautada pelas normas do bem comum e da justiça social. Hoje porém, à vista do contraste estridente, que há entre o pequeno número dos ultra-ricos e a multidão inumerável dos pobres, não há homem prudente, que não reconheça os gravíssimos inconvenientes da atual repartição da riqueza” [1].
Sob a ideia da busca por uma determinada igualdade no acesso a direitos e no usufruto de bens sociais, boa parte das Constituições de diversos países do mundo representam e desenvolvem modelos jurídicos de justiça social. Provavelmente o artigo 3º da Constituição da Itália de 1948 constitua um metamodelo: “(…) Cabe à República remover os obstáculos de ordem social e econômica que, limitando de fato a liberdade e a igualdade dos cidadãos, impedem o pleno desenvolvimento da pessoa humana e a efetiva participação de todos os trabalhadores na organização política, econômica e social do País”. Naturalmente, não se pode deixar de mencionar o Preâmbulo da Constituição Federal Argentina de 1949 [2] e as determinações que ela mesma teceu em seu próprio articulado sobre a justiça social. Também merece grande destaque a regra contida no artigo 193 da Constituição Federal do Brasil (1988): “A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais”. Como ensinou Norberto Bobbio, em sua Teoria da Justiça, sem igualdade entre os homens não se poderia alcançar e tampouco satisfazer o objetivo econômico em suas relações mútuas; por isso os textos fundamentais dos Estados fazem referência a formas de justiça distributiva em socorro, auxílio ou sustento aos menos favorecidos.
Atualmente, a justiça social é mandamento da Constituição Federal da Argentina (na redação vigente de seu texto, reformado em 1994). O objetivo primordial do bem-estar geral para toda a cidadania (não para um grupo de ricos), consagrado no Preâmbulo, une-se indissoluvelmente com os benefícios impostergáveis da justiça social, determinados no inciso 19 do artigo 75 da Constituição [3]. Todo o labor do Congresso (em especial: sua legislação) deve orientar-se para a promoção do desenvolvimento humano, para o progresso econômico com justiça social.
Portanto, todas as autoridades federais, o presidente em primeiro plano, devem cumprir e prosseguir com essa “realização” do mandamento constituinte. Sua negação ou rejeição resulta em gravemente abortar a justiça social: abolir, por um ato absolutista e irracional, um princípio fundamental de nosso texto fundamental. A Argentina é um Estado Social de Direito porque juridicamente é essa a determinação do poder constituinte. De todas as autoridades e de toda a cidadania espera-se um leal respeito à ordem livre, social e democrática que aquele instituiu. As regras constitucionais não são meras promessas; suas prescrições devem ser seguidas até suas últimas consequências. E essa observância às regras constitucionais é exatamente aquilo que identificará o gradiente de ordem de uma comunidade de cidadãos livremente iguais que aspiram ser, também, socialmente iguais. Todos os países desenvolvidos têm uma Constituição escrita baseada na divisão ou separação de funções, e mesmo que não exista nenhum texto fundamental que seja igual ou semelhante a outro, em todos os Estados constituídos por uma lei fundamental suas autoridades buscarão cumprir seus princípios e regras.
Na eventualidade de não se sentir à vontade com a justiça social, o presidente da Argentina precisaria de uma reforma da Constituição – nos termos do procedimento em vigor, que é o mesmo desde 1853 – que altere seu conteúdo. Enquanto a Constituição Federal, a forma das formas do ordenamento jurídico argentino, não for alterada por seus próprios meios de emenda, sua negação fática por mera opção ideológica e discursiva resulta – sob o enfoque de uma compreensão dogmática – em comportamento manifestamente distante de suas prescrições.
Há mais de 300 anos, Giambattista Vico, em seu Direito Universal, alertou sobre o fato de que o exercício da autoridade não deveria conflitar com a razão, sob pena de serem geradas monstruosidades jurídicas. Assim, a justiça social é a razão fundamental da suma regra do Direito da Argentina, um país em que 50% de sua população é pobre ou vulnerável (ou está prestes a sê-lo). Aqueles que negam ou rejeitam o postulado do Estado Constitucional acerca da justiça social sujeitam-se às próprias consequências fixadas pela Constituição (desde 1853) para diferentes tipos de descumprimento e violações que envolvem tentativas contra a ordem democrática por ela instituída.
[1] Nota dos Tradutores: Adotou-se, aqui, a tradução para o português que a Santa Sé estabeleceu para a Carta Encíclica Quadragesimo Anno, dada em 1931 pelo Papa Pio XI.
Disponível em: https://www.vatican.va/content/pius-xi/pt/encyclicals/documents/hf_p-xi_enc_19310515_quadragesimo-anno.html
[2] “Nós, os representantes do povo da Nação Argentina, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte por vontade e escolha das Províncias que a integram, em cumprimento aos pactos pré-existentes, com o objetivo de constituir a união nacional, fortalecer a justiça, consolidar a paz interior, proporcionar a defesa comum, promover o bem-estar geral e a cultura nacional, e assegurar os benefícios da liberdade para nós, para nossa posteridade e para todos os homens do mundo que queiram habitar o solo argentino; ratificando a irrevogável decisão de constituir uma Nação socialmente justa, economicamente libre e politicamente soberana, e invocando a proteção de Deus, fonte de toda razão e justiça, ordenamos, decretamos e estabelecemos esta Constituição para a Nação Argentina”. (Nos los representantes del pueblo de la Nación Argentina, reunidos en Congreso General Constituyente por voluntad y elección de las Provincias que la componen, en cumplimiento de pactos preexistentes, con el objeto de constituir la unión nacional, afianzar la justicia, consolidar la paz interior, proveer a la defensa común, promover el bienestar general y la cultura nacional, y asegurar los beneficios de la libertad, para nosotros, para nuestra posteridad y para todos los hombres del mundo que quieran habitar el suelo argentino; ratificando la irrevocable decisión de constituir una Nación socialmente justa, económicamente libre y políticamente soberana, e invocando la protección de Dios, fuente de toda razón y justicia, ordenamos, decretamos y establecemos esta Constitución, para la Nación Argentina).
[3] “Artigo 75 – Compete ao Congresso: (…) 19. Proporcionar o desenvolvimento humano, o progresso econômico com justiça social, a produtividade da economia nacional, a geração de emprego, a formação profissional dos trabalhadores, a defesa do valor da moeda, a pesquisa e o desenvolvimento científico e tecnológico, sua difusão e aproveitamento”. (Artículo 75. – Corresponde ao Congreso: (…) 19. Proveer lo conducente al desarrollo humano, al progreso económico con justicia social, a la productividad de la economía nacional, a la generación de empleo, a la formación profesional de los trabajadores, a la defensa del valor de la moneda, a la investigación y al desarrollo científico y tecnológico, su difusión y aprovechamiento).