Imagine que você tem um emprego fixo como professor de inglês e dá aula das 7h às 12h. Mas você também é músico, compositor e gravou uma canção que, do nada, sem planejamento algum, estoura numa rádio do Nordeste e toma conta do país do dia para a noite. Pois é, isso aconteceu com Ritchie, em 1983, quando Menina Veneno se transformou num megahit e virou de cabeça para baixo a vida do inglês mais brasileiro de todos os tempos — não, não é o Paul McCartney. E essa história completou 40 anos em 2023, motivo pelo qual o cantor vem fazendo uma turnê muito bem-sucedida, que tem lotado casas de show por onde passa.
O show que Ritchie vem apresentando pelo Brasil, sem exageros, é sensacional. Tem holografia, telas de alta definição, imagens geradas por inteligência artificial, aparição de cinco Ritchies no palco, e tudo isso serve de apoio para os clássicos do cantor, que vão da já citada Menina Veneno, passando por A Mulher Invisível e Voo de Coração, até Casanova, entre outras tantas. Aliás, o cantor faz show nesta sexta-feira (15), no Rio de Janeiro, na Arena Jockey, onde mostrará tudo isso a seus fãs.
“Nesta turnê tenho tocado em vários lugares, em São Paulo, Rio, em Salvador foi lindo. Eu fui levado às lágrimas várias vezes com esta turnê, porque está incrível. As pessoas cantam todas as músicas e têm um carinho. É incrível. É muito prazeroso de fazer”, diz o inglês, de 71 anos.
Nesta entrevista, o cantor falou bastante de seus shows, mas também de Menina Veneno e como encarou o sucesso repentino lá no início dos anos 1980. Acompanhe:
Você já não está de saco cheio de ficar explicando às pessoas, após 40 anos, se a letra de Menina Veneno diz “abajur cor de carne” ou “cor de carmim”?
[rindo] Não, francamente não. Porque isso mantém a música em evidência na verdade, pensando um pouco cinicamente. Mas, claro, enche o saco um pouquinho a insistência no errado, né? Eu tô aqui só para indicar como é a letra, eu não estou brigando por nada. Eu acho que as pessoas podem cantar como elas bem entenderem. Se vier me perguntar se é “cor de carmim” eu vou dizer que não, porque nunca foi. Isso é uma invenção da internet.
Como começou essa história?
Tem uns brincalhões que gostam de botar palavras na boca da gente. Então alguém inventou que eu tinha dito numa entrevista que não era “cor de carne” e que era “cor de carmim”, coisa que nunca aconteceu. Mas as pessoas leem na internet e acham que se está na internet tem que ser verdade, né? Era uma época mais inocente, mas o negócio colou. O que me irrita é que as pessoas não perguntam se é ou se não é e não usam as ferramentas que nós temos para, por exemplo, visualizar as contracapas dos meus LPs que têm as letras. Ou pode ir no Google. Quer dizer, não é tão difícil saber. Em vez disso, as pessoas veem a mim. Isso irrita, porque as pessoas não se dão ao trabalho nem de fazer uma minipesquisa. Mas bem ou mal, fala-se da música. Eu não posso reclamar. São 40 anos que eu estou comemorando agora com uma turnê linda, maravilhosa e que está satisfazendo a mim e aos fãs. E eu estou muito feliz de estar ainda vivendo esse momento.
Você tinha noção de que Menina Veneno pudesse ser tão comentada e ouvida até hoje?
Poxa, é uma música pop que não era para durar nem dois meses. Quando a fizemos, achamos que durar dois meses seria uma glória. Se tocasse por dois meses numa rádio qualquer. Então, ter essa sobrevida, que ela tem mesmo, ela atravessa gerações já. Vai de pais para os filhos e, às vezes, até para netos. Que é o meu caso. Meus netinhos de poucos anos de idade já obviamente cantam as músicas do vovô e tal. É uma coisa que já está na terceira geração, então é muito gratificante.
Menina Veneno foi composta em parceria com Bernardo Vilhena. Como foi o processo de criação dela?
Eu fiz a música, e o Bernardo, a letra, mas a gente faz o processo todo em tempo real. Eu sento com o teclado e ele vai escrevendo num caderno enquanto eu vou cantarolando. Vamos encaixando a letra na música, fazendo uma espécie de pingue-pongue. Às vezes a gente parte de um título. Um dia o Bernardo chegou com este nome “menina veneno”, então foi muito fácil a letra evoluir num dia só. A maior parte das nossas músicas foi feita assim. Chegávamos no começo da tarde com pouca coisa, uns fragmentos de ideia, e no final da noite, já até um pouco bêbados, a gente saía com uma letra pronta.
E a versão que Zezé Di Camargo e Luciano fizeram para Menina Veneno. Você gostou, não gostou?
Não, a versão deles não tem nada que eu não tenha gostado. Quem sou eu para não gostar de uma dupla que gravou acho que sete vezes a minha música e me sustentou durante os anos 90. Eu não posso reclamar de nada, eu sou muito grato. Tenho muito respeito. Só posso dizer que sertanejo não é um estilo que eu ouço.
Menina Veneno mudou sua vida?
Em Fortaleza a música escapuliu do saquinho. O divulgador levou uma fita de rolo para lá e o cara da rádio botou no ar. Não era para ser assim. A gravadora entrou em pânico, porque era para sair em abril de 83 o compacto, mas escapuliu para as rádios em janeiro, antes do Carnaval. Foi um caos. Era para ter uma campanha de marketing, um trabalho coordenado, e isso não aconteceu. Então, ela começou a tocar, se não me engano, na rádio Verdes Mares de Fortaleza por osmose, por engano. E não tiveram como frear, porque o telefone não parava de tocar com gente pedindo a música. Então, o lançamento foi todo puxado para um dia depois do Carnaval, que naquele ano foi em fevereiro. Ainda bem, porque, se não fosse assim, teria sido desastroso o lançamento. O que aconteceu é que a música, por conta própria, começou a tocar 14 vezes por dia em Fortaleza e assim veio descendo o país. Ela era tocada pelos radialistas não porque a gravadora mandou, não teve jabá, mas porque o povo tava pedindo. E foi um fenômeno por causa disso. A música literalmente caiu na boca do povo. Ela começou a tocar antes de ser lançada. Foi um fenômeno popular. Não foi um fenômeno de gravadora, foi um fenômeno popular. Foi uma coisa impressionante e mudou a minha vida da noite para o dia. Eu era um professor de inglês dando aulas das 7h até as 12h para alunos como Gal Costa, Natália do Valle, Egberto Gismonti, um monte de gente. Eu tinha um emprego. E a gravadora falou: “Ritchie, não vai dar para você ficar fazendo meio expediente. Você vai ter que se dedicar a isso, porque a música estourou. Você agora é um artista. Larga seu emprego e vem com a gente porque vai ser um voo lindo”. E foi. Fizemos 139 shows em sete meses. Tinha poucas chances de voltar para casa, estava com filhos pequenos, mas era a minha hora, era pegar ou largar. E era lindo, porque a gente criou um circuito para quem veio depois da gente. Tocamos em lugares onde nunca tinham visto uma guitarra elétrica.
Esta sua turnê já pode ser considerada um fenômeno para um artista que ficou um certo tempo afastado da grande mídia. Você esperava essa receptividade toda?
Olha, eu queria comemorar com os fãs, queria dar um presente para os fãs. São muitos anos que eu não fazia show com este repertório. Então eu fiquei muito contente, superou minhas expectativas, principalmente a resposta e o carinho do público.
Como surgiu a ideia desta turnê?
Eu estava num sono quase que profundo quando fui acordado por um cara chamado André Barcinski, um jornalista, e me tornei muito amigo dele. Ele perguntou: “Ritchie, você não pensa em fazer uma turnê de comemoração de 40 anos?”. E eu disse: “Poxa, pensar em fazer isso é uma coisa, realizar já são outros quinhentos”. E ele afirmou que poderia ajudar e disse “vamos fazer um show no Cine Joia” [em São Paulo]. Esse show foi lindo e foi fundamental, porque fez cair a ficha. O lugar estava lotado, com as pessoas cantando as minhas músicas aos berros do começo ao fim. E esse show teve tanta repercussão para mim e falei para o André se ele não queria partir para a estrada. E ele disse que não podia e que eu precisava de um empresário, alguém que acredite no que você está fazendo e te bote para rodar. Aí eu fui procurar um amigo meu, que é o Steve Altit, que é um cara que só trabalha com artistas internacionais. Fui falar com ele e ele me falou que decidiu me pegar como o único artista nacional para trabalhar.
Você vai lançar uma música nova?
Sim, eu estou cantando uma música inédita no meu repertório que é uma regravação feita em homenagem à Rita Lee. Todo mundo está fazendo sua homenagem a esta pessoa tão importante. E para mim ela foi mais do que importante, ela foi instrumental na minha vinda ao Brasil. Foi quem me convidou para vir ao Brasil. Da mesma maneira que a Gal Costa foi a pessoa que me incentivou a gravar minhas próprias músicas. São duas mulheres muito presentes na minha vida musical no Brasil. Quando encontrei a Rita eu sabia muito pouca coisa sobre o Brasil, conhecia bossa nova, Girl From Ipanema. Eu era um analfabeto e ela me apresentou o Brasil através da música dos Mutantes. E descobri muita coisa, não era só esse rock’n’roll dos Mutantes, era Milton Nascimento, Egberto Gismonti, o som do Norte, do Nordeste, o xote, o baião… é um baú de coisas que eu não sabia se ia ter volta para a Inglaterra. E não teve. Faz 20 anos que não vou lá e estou aqui há 50.
Então, a música nova é da Rita Lee? Qual é?
Sim, tem uma música dela que a gente faz no show que já não é mais segredo, que é Ando Meio Desligado. A minha história particular com esta música é que foi a primeira que a Rita me mostrou em Londres. Acho que é de 1968. A gente estava no estúdio, em Londres, e a Rita apareceu lá. Eu não sabia nada sobre ela, só sabia que era uma artista e pedi para ouvir alguma coisa dela e ela me mostrou Ando Meio Desligado. É uma música que para mim foi crucial. Eu adorei. E foi isso, em parte, que me convenceu a querer conhecer mais sobre o Brasil. Então, é uma música muito marcante para mim. É muito pessoal. É funcional para mim nessa coisa de comemoração de 50 anos de Brasil. Então, Ando Meio Desligado é o novo single, mas vai ter também um lado B, que será uma música inédita que eu ainda estou escolhendo entre as poucas que eu tenho aqui à mão. É provável que seja uma música com letra do Fausto Nilo, que é um outro poeta que eu adoro e que é de Fortaleza inclusive. Mas tem também uma outra inédita com o Bernardo e outra com o Alvin L.
E você tem a intenção de lançar um disco novo mais para a frente?
Eu não sei, eu não faço muitos planos, não. As circunstâncias às vezes apresentam uma outra realidade. Eu prefiro ir com o fluxo [risos]. O Steve tem planos, mas estamos focados na turnê, que vai se estender por 2024. Já temos shows fechados até agosto.