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O melhor filme de mistério dos últimos 3 anos está na Netflix — e você não assistiu

Quase sempre, a relação entre pais e filhos é cheia de idas e vindas, altos e baixos, com situações em que a parte mais velha desaconselha muitas das atitudes que definem e justificam a existência de quem responde pelo lado mais novo. Esse hiato não só de anos como de intenções entre duas pessoas que se querem bem, mas que entendem o mundo de jeitos rigorosamente diversos, mesmo antagônicos, vai apontando para desdobramentos muitas vezes dramáticos de questões que passariam por banais aos olhos insensíveis de determinado grupo social.

A adolescência é decerto a epítome dos desconfortos entre essas duas espécies tão distintas de um mesmo habitat. Alterações hormonais, pelos selvagens por todo o corpo, acnes monstruosas, uns engordam demais, outros crescem do dia para a noite, e o mundo lá fora em constante ebulição, feérico, sombrio, vomitando sua loucura sobre cérebros ainda tão verdes e espíritos tão desarmados.

Não por acaso, adultos ficam especialmente vulneráveis a paranoias como a de que padece a mãe de “Fuja”, ainda que ao longo da bem pesada hora e meia Aneesh Chaganty reserve ao público a grande surpresa que explica até certa altura a fixação que presta-se a fio condutor da narrativa. Chaganty e seu corroteirista Sev Ohanian deixam a história nas mãos seguras de duas atrizes com técnicas quase antagônicas, mas que se complementam, o sal de um trabalho cuja artesania o torna inimitável.

Na introdução, Diane Sherman acaba de dar à luz uma menina. Pelo que vai escrito na tela, a criança tem arritmia, asma e diabetes, e o público toma parte na angústia de Diane graças à fotografia de Hillary Fyfe Spera, que trata de exacerbar o tom esverdeado da iluminação dos quartos e dos corredores. Dezessete anos depois, as duas, mãe e filha, parecem felizes, e logo se tem claro que Diane renunciara a tudo quanto poderia ter conseguido para dedicar a Chloe todas as horas de seu dia, além de pagar os remédios mais modernos e um sem fim de sessões de fisioterapia, para ajudar na motricidade da garota. O segredo num filme tão enganosamente prosaico é dar toda a corda a Sarah Paulson e Kiera Allen, portadora de esclerose múltipla na vida real.

A despeito de sua condição física, a performance de Allen passa por cima de qualquer resquício de obviedade, e conforme o enredo ganha corpo, até o espectador mais desatento é capaz de ligar os pontos e concluir que algo nessa relação cheira mal.

O diretor remexe esse lodo nas sequências em que Chloe aparecer querendo a todo custo provar para a mãe que pode ser independente e levar uma vida normal, deixando no ar o desejo quase sufocante de saber ao certo por que sua vida seguiu tal curso, qual a razão de depender tanto da mãe. Paulson, por seu turno, esconde a verdadeira natureza de sua personagem mediante olhares ternos, difusos, que volta à garota, também abusando da boa vontade de quem assiste. No fundo, todos suspeitamos de algum podre daqueles de Diane; a mágica de Chaganty é fazer com que a audiência pense, sim, que a mãe é, sim, responsável pela desgraça da filha, mas o desfecho do caso é tetricamente inaudito.


Filme: Fuja
Direção: Aneesh Chaganty
Ano: 2021
Gêneros: Terror/Mistério
Nota: 8/10