Quando minha mãe morreu, aos 62 anos, após sofrer mais de dois anos com um câncer nos seios e metástase, quase morri junto com ela. Um mês depois, terminei de escrever “A Outra: um estudo antropológico sobre a identidade da amante do homem casado”. Cada palavra do livro foi escrita com as minhas lágrimas.
Quando meu pai descobriu um câncer no pâncreas, aos 68 anos, o doutor Drauzio Varella me disse que ele iria viver cerca de três meses. Não desgrudei um só minuto do meu pai durante os cem dias da doença. Depois do enterro, já no avião de volta para o Rio de Janeiro, escutei a voz do meu pai me dizendo: “Você tem que escrever um livro sobre tudo o que sofreu durante a minha doença. E o título deve ser ‘Cem Dias de Lágrimas’”. Até hoje não consegui terminar de escrever o livro.
No mesmo dia em que descobri que meu ex-marido me traía com garotas de programa, quando eu chorava desesperadamente porque ele saiu de casa para nunca mais voltar, chegou uma caixa com meu livro “Infiel: notas de uma antropóloga”.
Escrever com as minhas lágrimas foi o único remédio que encontrei para continuar sobrevivendo e conseguir superar a dor dilacerante da saudade.
Agora, estou escrevendo o relatório final do meu pós-doutorado em psicologia social sobre envelhecimento, autonomia e felicidade, mas, apesar das minhas lágrimas, ainda não encontrei a linha que costura as minhas pesquisas sobre a violência física, verbal e psicológica que os mais velhos sofrem dentro das próprias casas e famílias.
Como já contei aqui, depois do incêndio no meu prédio, passei um bom tempo morando em uma casinha em uma cidade perto do Rio de Janeiro, onde fui atacada e mordida por cinco cães.
Antes do incêndio, todos os dias, pontualmente às 18 horas, ficava observando o barulhento balé que quatro maritacas faziam na minha janela. Desde que voltei para casa, as quatro maritacas não apareceram mais para alegrar o meu dia.
Sempre que sento no sofá do quarto para meditar, fico observando com um binóculo um urubu pousado no telhado do prédio vizinho. Há alguns dias, quando estava meditando, levei um susto quando vi o urubu pousar no parapeito da minha janela. No início, não consegui enxergar direito, pois tenho quase seis graus de miopia. Peguei meus óculos e sentei de novo no sofá. Era mesmo o urubu do prédio vizinho. Ele me olhava fixamente como se quisesse me dizer algo muito importante.
Acho que ele estava tentando me dizer para aproveitar a dramática experiência de ter quase morrido intoxicada como uma lição para viver melhor. “A vida é breve demais, não alimente seus demônios internos e externos”, me dizia o olhar do urubu, “escreva sobre a sua tristeza e busque transformá-la em beleza, escreva sobre os seus medos e procure transformá-los em coragem e, mais importante do que tudo, aprenda a transformar a dor em amor”. Depois disso, o urubu nunca mais apareceu.
Na coluna anterior, escrevi sobre o ataque que a escritora Roseana Murray sofreu de três pitbulls. Terminei a coluna com uma mensagem amorosa: “Querida Roseana, estou rezando todos os dias para que você continue a transformar tristeza em alegria e dor em poesia. Afinal, ‘viver é o milagre que nos guia’”.
No domingo passado, chorei muito quando li o texto que Roseana postou no seu perfil do Instagram.
“Ainda estou na CTI. Me lembro do mito de Cérbero, o cachorro de três cabeças que tomava conta da passagem dos recém-mortos para o outro mundo. Eles eram ferozes e ninguém os vencia. Os três cachorros que me atacaram pareciam Cérbero, o cão de três cabeças, prontos para me levar para a morte. Não conseguiram. Estou viva… Essa experiência de ser meio humana meio selvagem, com a força adquirida de Cérbero, aumenta a minha responsabilidade em relação à vida e a tudo o que é belo… Mesmo nos piores cenários há que se buscar beleza. Esse é o nosso ofício. E a Paz acima de tudo.”
Meu marido, emocionado com as minhas lágrimas, me perguntou: “Por que você não escreve uma coluna para a Folha sobre a recuperação da escritora que venceu os cães ferozes?”. Respondi que sou incapaz de colocar em palavras tudo o que estou aprendendo com uma mulher tão sensível, admirável e corajosa, que sabe transformar a sua dor em poesia. “Então”, ele sugeriu, “por que você não escreve sobre o sumiço das maritacas e do urubu?”.
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